É provável que o senador goiano esteja politicamente morto – mas o país que ele defendia continua vivo, apesar de órfão
“Apaguemos a lanterna de Diógenes: achei um homem” – diria Machado de Assis se pudesse testemunhar o discurso de Demóstenes Torres no Senado, no dia 21 de junho de 2011. Naquela data, o senador goiano usou a tribuna para denunciar a doutrinação nos livros didáticos e paradidáticos distribuídos pelo MEC nas escolas públicas do país. Num misto de ironia e indignação, Demóstenes fez desfilar diante de senadores atônitos o verdadeiro circo de horrores em que se tornou o ensino brasileiro. Ainda que algumas de suas denúncias não fossem inéditas, pois já haviam saído na imprensa, aquela foi a primeira vez em que o descalabro cognitivo e moral dos livros didáticos foi sintetizado – com inteligência e coragem – por uma autoridade da República.
Num feito provavelmente inédito na história recente do Brasil, o senador goiano dedicou mais de 21 minutos de seu tempo como orador, sem contar os apartes dos colegas, para dissecar um tema que jamais interessa aos políticos comuns: os aspectos didático-pedagógicos da educação. Fazendo da tribuna uma cátedra e do seu mandato um magistério, Demóstenes Torres alertou a nação quanto ao próprio destino do país, que está sendo destruído em seus alicerces – as salas de aula do ensino básico. Enquanto a maioria dos políticos só consegue ver a escola pelo prisma da construção de prédios e distribuição de merenda, incapazes que são de enxergar a humanidade de professores e alunos, Demóstenes, usando a tribuna do Senado, demonstrou compreender a educação como a paideia da Antiga Grécia – um processo civilizatório que edifica o próprio homem.
Em seu memorável discurso, o senador goiano denunciou o caso de um livro didático que negligenciou vultos históricos como D. João VI, Olavo Bilac e Juscelino Kubitschek para dedicar duas páginas à transexual Roberta Close, sobre a qual o aluno é convidado a responder oito perguntas, devendo saber, entre outras coisas, o que ela fez após mudar de sexo. Chamou a atenção também para a descarada transformação da história em mero panfleto dos movimentos sociais, especialmente os mais predadores, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST. E sobretudo denunciou a verdadeira pornografia travestida de educação sexual que conta a alunos de escola historinhas de meninas de 10 anos que fazem sexo oral em velhos, gemendo palavras de prazer, e mostra o estupro de uma professora, insinuando que a vítima gostou da violência.
Bomba nas bibliotecas
“Realmente, é o fundo do poço ou será que o Governo alcança absurdo maior do que distribuir nas escolas um livro em que o mestre é achincalhado e uma professora é estuprada? Nesses tempos de violência em colégios, o Governo faz campanha pelo desarmamento, mas não tira as bombas das prateleiras das bibliotecas” – discursou Demóstenes Torres. A denúncia do senador goiano – calcada na leitura literal de trechos das obras analisadas – causou espanto em plenário. Em aparte, o senador Waldemir Moka (PMDB-MS) contou ter comentado com o colega Pedro Taques (PDT-MT) que era até difícil acreditar que pudesse existir um conteúdo didático como o que o parlamentar goiano denunciava em plenário. “Fico imaginando um pai de aluno ao ler isso. Qual seria a reação de um pai, de uma mãe? É uma coisa que chega a chocar”, afirmou o senador sul-mato-grossense, ressaltando a importância da denúncia feita pelo senador goiano.
Demóstenes Torres enfatizou que, ao folhear alguns dos livros comprados pelo governo federal, a impressão que se tem é que, “dentro de pouco tempo, chegarão às bibliotecas públicas as revistas e os filmes de sexo explícito”. O senador foi taxativo: “Se o órgão responsável pela educação não se choca com cenas de estupro e menina de seis anos ser chamada de ‘vagabundinha’, como no livro Teresa, as coleções em quadrinhos (bons chamarizes para crianças), também carregam forte conteúdo erótico, com desenhos de casais nus na cama, fazendo sexo encostados na parede, violência sexual contra a mulher, além de cigarro e cachimbo. Todos esses livros têm na capa o carimbo do MEC” – denunciou. O senador lembrou, ainda, que “as comissões que aprovaram as compras desses livros são as mesmas que criaram problemas com Monteiro Lobato, tachando-o de racista”.
O discurso de Demóstenes Torres denunciando a doutrinação nos livros didáticos teve boa repercussão nas redes sociais (duas cópias no You Tube somam mais de 46 mil exibições), mas o tema jamais mereceu a devida atenção da grande imprensa, que se limita a registrar as denúncias do gênero, valendo-se do disse-que-disse das fontes, sem ousar uma análise mais profunda dos fatos. E a razão é uma só: as universidades, que deveriam fornecer os textos críticos sobre a questão, são também responsáveis pelo descalabro moral e cognitivo do ensino brasileiro e não hesitam em mascarar em forma de argumentos científicos as meras palavras de ordem com que defendem conteúdos didáticos como aqueles que foram denunciados pelo senador Demóstenes Torres. Ouso dizer que essa talvez seja a forma mais grave de corrupção: a corrupção dos políticos assalta o bolso – a dos intelectuais mata a alma.
De herói a vilão
Ao contrário do que se possa pensar, a frase que fecha o último parágrafo não foi engendrada agora, em defesa do senador Demóstenes Torres: eu a escrevi há mais de seis anos para defender o tesoureiro Delúbio Soares dos ataques da filósofa Marilena Chauí na época do mensalão, que levou à queda do ministro José Dirceu, no segundo grande escândalo da Era Lula – o primeiro foi protagonizado justamente pelo bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, que agora divide o palco da corrupção com o senador Demóstenes Torres. Marilena Chauí era contra a expulsão de José Dirceu do PT, mas queria satanizar Delúbio Soares: “É inaceitável a expulsão de um quadro partidário por causa de suas convicções políticas. Mas o caso de Delúbio é diferente, é um caso de delinqüência. Mesmo que você diga que a iniciativa não é dele” – declarou a filósofa da USP em entrevista à revista Caros Amigos, publicada em novembro de 2005.
Como se vê, numa guerra, a filósofa Marilena Chauí puniria o soldado, que cumpre ordens, e livraria a cara do general, que manda e desmanda. Foi essa lógica esconsa das universidades (que, como ensinava Durkheim, tem graves implicações morais) a verdadeira tábua de salvação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sem esse decisivo apoio dos formadores de opinião, capitaneados pelos intelectuais universitários, inclusive os pusilânimes intelectuais tucanos, Lula não teria terminado o mandato. Na época, o PT foi colhido por um turbilhão de denúncias que iam da ação de lobistas nas vizinhanças do gabinete presidencial até a confissão do publicitário Duda Mendonça de que recebera parte do pagamento pela campanha eleitoral de Lula por meio de depósitos clandestinos numa conta secreta no exterior. Contra Lula não faltou nem mesmo um Pedro Collor em dose dupla: os irmãos Bruno Daniel e João Francisco Daniel, que acusam a cúpula petista de tentar acobertar o caráter político do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André, que segundo eles, era caixa de campanha do PT nacional.
É justamente o apoio dos formadores de opinião que vai faltar a Demóstenes Torres, agora que o senador goiano, em menos de um mês, viu sua imagem pública ruir. Cumprindo seu segundo mandato no Senado, Demóstenes se tornou um dos maiores líderes nacionais da oposição, visto como uma espécie de reserva moral do país, dotado de coragem política e conhecimento jurídico. Desde sua primeira eleição para o Senado em 2002, o parlamentar goiano se destacou como expressivo líder nacional, tornando-se uma presença frequente na grande imprensa, apesar de oriundo de um Estado com pouca visibilidade política e mediana importância econômica. Mas, nas últimas semanas, Demóstenes passou de herói da oposição a vilão nacional, ocupando as manchetes dos principais veículos de comunicação do país. Pelas declarações de seus próprios colegas de partido, o DEM, e de vários senadores que o apoiaram no momento inicial das denúncias, é quase certo que o senador goiano será cassado.
Investigações seletivas
Tudo começou há cerca de um mês, quando vazaram na imprensa informações confidenciais da Polícia Federal associando Demóstenes Torres ao empresário Carlos Augusto Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, preso na Operação Monte Carlo e apontado pelo Ministério Público Federal como chefe da “máfia dos jogos”. A princípio, o Brasil ficou sabendo que o senador goiano recebera de Carlinhos Cachoeira, como presente de casamento, uma cozinha completa e que ambos conversaram quase 300 vezes ao telefone. Em 6 de março, Demóstenes subiu à tribuna do Senado e se defendeu, invocando a amizade entre sua esposa e a do contraventor para justificar as ligações telefônicas e o presente de casamento. Cerca de 40 senadores de vários partidos, inclusive do PT, solidarizaram-se com o senador goiano, enaltecendo sua biografia e externando total confiança em seus esclarecimentos.
Mas o calmante durou pouco. Em conta-gotas, novas denúncias foram vazando sobre a reputação de Demóstenes, começando pela revelação de que o senador recebeu um dos 15 aparelhos de rádio habilitados nos Estados Unidos pelo contraventor para escapar do monitoramento da polícia. As conversas telefônicas também mostram que Demóstenes pediu a Cachoeira o pagamento de uma despesa de R$ 3 mil reais com táxi aéreo e ganhou um iPad do contraventor. Em seguida, surgiram especulações na revista Carta Capital de que o senador seria sócio de Cachoeira, recebendo 30% de toda a verba arrecadada nas atividades de contravenção. Diante dessa sucessão de denúncias, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 27 de março, a instauração de inquérito para a investigar Demóstenes Torres e os deputados federais goianos Sandes Júnior (PP) e Carlos Alberto Leréia (PSDB), que também teriam ligações com o bicheiro.
A partir daí, a derrocada política de Demóstenes Torres se tornou irreversível. No mesmo dia em que passou a ser alvo da Procuradoria Geral da República, ele renunciou à liderança do DEM no Senado e, em 28 de março, o Jornal Nacional, da Rede Globo, com base nas gravações da Polícia Federal, revelou que o senador pode ter recebido mais de R$ 3 milhões de reais de Carlinhos Cachoeira, em troca não apenas de defender os interesses do contraventor, como lobista, mas até mesmo de prospectar novos negócios para o empresário, como se fora seu sócio. Diante dessa profusão de denúncias e do pedido da Procuradoria Geral da República, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou, em 29 de março, a quebra do sigilo bancário de Demóstenes Torres. Foi a pá de cal na trajetória política do senador goiano. O DEM ameaçou expulsá-lo e, numa tentativa de evitar a perda de seus direitos políticos, Demóstenes decidiu se antecipar e pedir sua desfiliação do partido.
Os dois Demóstenes
Desde então, Demóstenes Torres optou pelo silêncio. Suas últimas aparições foram virtuais e burocráticas, através de notas no Twitter, alegando inocência, e por meio dos comunicados em que abdicou da liderança do DEM no Senado e se desligou do partido. Na quarta-feira, 4, cumpriu, também burocraticamente, o preenchimento de seu espaço, como colunista, no blog do jornalista Ricardo Noblat, do jornal O Globo. No artigo, Demóstenes não se defende das acusações, preferindo criticar o pacote do governo Dilma para as indústrias. Sobre as denúncias, quem fala é seu advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que, segundo um perfil traçado por Daniela Pinheiro na revista Piauí, em novembro último, já foi advogado de dois presidentes (José Sarney e Itamar Franco), um vice e 40 governadores, além de cinco presidentes de partido, dezenas de parlamentares, ministros de vários governos e grandes empreiteiras. Já o advogado de Carlinhos Cachoeira é o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos.
A facilidade com que os advogados brasileiros transitam entre o público e o privado, podendo passar facilmente de ministro da Justiça a advogado de contraventor, ou vice-versa, já demonstra que há algo errado com a República brasileira. E o caso de Demóstenes Torres é ilustrativo dessa realidade. Parte das denúncias de que é alvo decorre da própria natureza do Estado brasileiro, que, devido ao seu gigantismo, é inevitavelmente corrupto. Carlinhos Cachoeira não é o único dublê de empresário bem-sucedido e contraventor suprapartidário. Todos os casos de corrupção que já vieram a público até agora sempre tiveram figuras parecidas e muitas outras vão continuar escondidas nos bastidores do poder, sem jamais serem descobertas. O que mais espanta no caso de Demóstenes Torres não é o fato de ele ter defendido interesses de grupos (algo comum e inevitável nesse Brasil cartorial), mas a desenvoltura com que fazia o papel de lobista, ao mesmo tempo em que combatia com veemência a corrupção – a meu ver, o aspecto menos positivo de sua atuação política.
O Demóstenes em quem votei duas vezes para o Senado – e não me arrependo de tê-lo feito – não era o que relatou a inútil “Lei da Ficha Limpa”, mas o Demóstenes do discurso contra a doutrinação nos livros didáticos; do combate à política de cotas raciais; das críticas à total frouxidão das prisões brasileiras. Ao defender, com inteligência, essas causas, Demóstenes abria uma perspectiva para que o majoritário Brasil da realidade se fizesse representar no Parlamento – hoje, cada vez mais refém do ilusório Brasil dos acadêmicos. Incapaz de enfrentar a utopia do “outro mundo possível” criada nas universidades e disseminada nos veículos de comunicação, o Congresso Nacional não se cansa de anarquizar os costumes através de leis que oprimem o homem comum, ao mesmo tempo que criam benesses para as minorias de estimação da esquerda, que vão dos viciados em crack aos anarquistas da bicicleta, passando por gays e feministas, para ficar em alguns exemplos.
O erro do DEM
Talvez pelo fato de ser oriundo do Ministério Público, Demóstenes Torres era um dos raros políticos em condições de enfrentar a hegemonia do pensamento de esquerda e foi, sobretudo, dessa forma que conseguiu se destacar no plano nacional. Por isso, é importante que as bandeiras empunhadas publicamente por Demóstenes não acompanhem o seu féretro político. Infelizmente, o DEM não é capaz de perceber isso e seus líderes só estão preocupados em salvar a própria pele. Desde o final do governo Fernando Henrique, o partido vem se esvaindo em erros e escândalos, começando pela desastrada troca de nome. Agora, repete o mesmo erro, antecipando a entrega dos dedos antes mesmo que os anéis lhe sejam cobrados. O DEM se apressou a condenar Demóstenes antes mesmo do PT, sob a velha alegação de que não aceita corruptos e corta na própria carne. Ora, a ser assim, o partido deveria escolher melhor seus filiados, ou em breve não terá nem ossos.
Para os formadores de opinião, o DEM será sempre sinônimo de corrupção e atraso, por mais que o partido expurgue os seus corruptos, seguindo um caminho oposto ao adotado pelo PT. E isso não vai mudar, ainda que o senador Agripino Maia (DEM-RN), repetindo o próprio Demóstenes, insista em posar de vestal, antecipando-se ao dedo acusador dos adversários. O senador goiano se comportou de modo indefensável, sem dúvida, mas o DEM precisa pensar também na sobrevivência da oposição e das instituições, sem as quais ele próprio estará morto, entregando cabeça após cabeça e, mesmo assim, vendo sua imagem chafurdar mais e mais na lama. Não adianta antecipar a entrega da cabeça de Demóstenes sem que o partido cumpra seu papel de oposição, exigindo que se apure o caráter um tanto seletivo do vazamento das investigações da Polícia Federal, numa ameaça à própria liberdade de imprensa, como mostra o cerco que vem sendo armado contra a revista Veja, acusada de ser cúmplice de Carlinhos Cachoeira.
E o que é mais importante: não se pode deixar que as bandeiras do Demóstenes público sejam confundidas com as atitudes do Demóstenes subterrâneo. O fato de Demóstenes Torres parecer um despachante de Carlinhos Cachoeira nas fitas da Polícia Federal não faz com que se torne mentirosa sua grave denúncia a respeito da doutrinação nos livros didáticos, por exemplo. Seu discurso relativamente conservador, mas de uma moderna contundência, poderia ter contribuído para curar a política brasileira de sua mais grave anomalia – a ausência de uma corrente entre liberal e conservadora, que aposte na legalidade, nas instituições e no indivíduo, dando voz à maioria dos brasileiros, que querem apenas cuidar da vida e não militar por uma causa. Demóstenes Torres representava esse “Brasil profundo”, do homem comum, subjugado pelas leis, mas se deixou engolfar por outras profundezas, a dos homens que se julgam acima delas. Por isso, acendamos, outra vez, a lanterna de Diógenes: perdeu-se um homem – mas é preciso recuperar, com urgência, suas bandeiras.
Jornalista: José Maria e Silva
Fonte:
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